Metamorfose

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Meaning of Metamorfose:

S.f.(a)
1. Mudança radical de forma que sofrem insetos e certos animais, como o da larva para o estado adulto.
2. P.ext. Qualquer transformação radical, como que por mágica ou feitiçaria.


Usage example of the word Metamorfose:

1- O girino metamorfoseou-se em um sapo.
2- A mudnça de vida da zona rural para a zona urbana foi uma metamorfose radical.



A Metamorfose)
(Franz Kafka)

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.

Que me aconteceu? - pensou. Não era um sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada.

Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia!

Gregor desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado - ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? - cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara.

Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos. Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as costas, - mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado.

Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era capaz de ser bom para mim - quem sabe? Se não tivesse de me agüentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária! Também é um hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem - o que deve levar outros cinco ou seis anos -, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às cinco.

Olhou para o despertador, que fazia tique-taque na cômoda. Pai do Céu! - pensou. Eram seis e meia e os ponteiros moviam-se em silêncio, até passava da meia hora, era quase um quarto para as sete. O despertador não teria tocado? Da cama, via-se que estava corretamente regulado para as quatro; claro que devia ter tocado. Sim, mas seria possível dormir sossegadamente no meio daquele barulho que trespassava os ouvidos? Bem, ele não tinha dormido sossegadamente; no entanto, aparentemente, se assim era, ainda devia ter sentido mais o barulho. Mas que faria agora? O próximo trem saía às sete; para apanhá-lo tinha de correr como um doido, as amostras ainda não estavam embrulhadas e ele próprio não se sentia particularmente fresco e ativo. E, mesmo que apanhasse o trem, não conseguiria evitar uma reprimenda do chefe, visto que o porteiro da firma havia de ter esperado o trem das cinco e há muito teria comunicado a sua ausência. O porteiro era um instrumento do patrão, invertebrado e idiota. Bem, suponhamos que dizia que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria lá a casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes perfeitamente saudáveis. E enganaria assim tanto desta vez? Efetivamente, Gregor sentia-se bastante bem, à parte uma sonolência que era perfeitamente supérflua depois de um tão longo sono, e sentia-se mesmo esfomeado.

À medida que tudo isto lhe passava pela mente a toda a velocidade, sem ser capaz de resolver a deixar a cama - o despertador acabava de indicar quinze para as sete -, ouviram-se pancadas cautelosas na porta que ficava por detrás da cabeceira da cama.

- Gregor - disse uma voz, que era a da mãe -, é um quarto para as sete. Não tem de apanhar o trem?

Aquela voz suave! Gregor teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível e persistente guincho chilreante como fundo sonoro, que apenas conservava a forma distinta das palavras no primeiro momento, após o que subia de tom, ecoando em torno delas, até destruir-lhes o sentido, de tal modo que não podia ter-se a certeza de tê-las ouvido corretamente. Gregor queria dar uma resposta longa, explicando tudo, mas, em tais circunstâncias, limitou-se a dizer:

- Sim, sim, obrigado, mãe, já vou levantar.

A porta de madeira que os separava devia ter evitado que a sua mudança de voz fosse perceptível do lado de fora, pois a mãe contentou-se com esta afirmação, afastando se rapidamente. Esta breve troca de palavras tinha feito os outros membros da família notarem que Gregor estava ainda em casa, ao contrário do que esperavam, e agora o pai batia a uma das portas laterais, suavemente, embora com o punho.

- Gregor, Gregor - chamou -, o que você tem?

E, passando pouco tempo depois, tornou a chamar, com voz mais firme:

- Gregor! Gregor!

Junto da outra porta lateral, a irmã chamava, em tom baixo e quase lamentoso:

- Gregor? Não se sente bem? Precisa de alguma coisa?

Respondeu a ambos ao mesmo tempo:

- Estou quase pronto - e esforçou-se o máximo por que a voz soasse tão normal quanto possível, pronunciando as palavras muito claramente e deixando grandes pausas entre elas. Assim, o pai voltou ao breve almoço, mas a irmã segredou:

- Gregor, abre esta porta, anda.

Ele não tencionava abrir a porta e sentia-se grato ao prudente hábito que adquirira em viagem de fechar todas as portas à chave durante a noite, mesmo em casa.

A sua intenção imediata era levantar-se silenciosamente sem ser incomodado, vestir-se e, sobretudo, tomar o breve almoço, e só depois estudar que mais havia a fazer, dado que na cama, bem o sabia, as suas meditações não levariam a qualquer conclusão sensata. Lembrava-se de muitas vezes ter sentido pequenas dores enquanto deitado, provavelmente causadas por posições incômodas, que se tinham revelado puramente imaginárias ao levantar-se, e ansiava fortemente por ver as ilusões desta manhã desfazerem-se gradualmente. Não tinha a menor dúvida de que a alteração da sua voz outra coisa não era que o prenúncio de um forte resfriado, doença permanente dos caixeiros-viajantes.

Libertar-se da colcha era tarefa bastante fácil: bastava-lhe inchar um pouco o corpo e deixá-la cair por si. Mas o movimento seguinte era complicado, especialmente devido à sua invulgar largura. Precisaria de braços e mãos para erguer-se; em seu lugar, tinha apenas as inúmeras perninhas, que não cessavam de agitar-se em todas as direções e que de modo nenhum conseguia controlar. Quando tentou dobrar uma delas, foi a primeira a esticar-se, e, ao conseguir finalmente que fizesse o que ele queria, todas as outras pernas abanavam selvaticamente, numa incômoda e intensa agitação. Mas de que serve ficar na cama assim sem fazer nada, perguntou Gregor a si próprio.

Pensou que talvez conseguisse sair da cama deslocando em primeiro lugar a parte inferior do corpo, mas esta, que não tinha visto ainda e da qual não podia ter uma idéia nítida, revelou-se difícil de mover, tão lentamente se deslocava; quando, finalmente, quase enfurecido de contrariedade, reuniu todas as forças e deu um temerário impulso, tinha calculado mal a direção e embateu pesadamente na extremidade inferior da cama, revelando-lhe a dor aguda que sentiu ser provavelmente aquela, de momento, a parte mais sensível do corpo.

Visto isso, tentou extrair primeiro a parte superior, deslizando cuidadosamente a cabeça para a borda da cama. Descobriu ser fácil e, apesar da sua largura e volume, o corpo acabou por acompanhar lentamente o movimento da cabeça. Ao conseguir, por fim, mover a cabeça até à borda da cama, sentiu-se demasiado assustado para prosseguir o avanço, dado que, no fim de contas caso se deixasse cair naquela posição, só um milagre o salvaria de magoar a cabeça. E, custasse o que custasse, não podia perder os sentidos nesta altura, precisamente nesta altura; era preferível ficar na cama.

Quando, após repetir os mesmos esforços, ficou novamente deitado na posição primitiva, suspirando, e viu as pequenas pernas a entrechocarem-se mais violentamente que nunca, se possível, não divisando processo de introduzir qualquer ordem naquela arbitrária confusão, repetiu a si próprio que era impossível ficar na cama e que o mais sensato era arriscar tudo pela menor esperança de libertar-se dela. Ao mesmo tempo, não se esquecia de ir recordando a si mesmo que era muito melhor a reflexão fria, o mais fria possível, do que qualquer resolução desesperada. Nessas alturas, tentava focar a vista tão distintamente quanto podia na janela, mas, infelizmente, a perspectiva da neblina matinal, que ocultava mesmo o outro lado da rua estreita, pouco alívio e coragem lhe trazia. Sete horas, disse, de si para si, quando o despertador voltou a bater, sete horas, e um nevoeiro tão denso, por momentos, deixou-se ficar quieto, respirando suavemente, como se porventura esperasse que um repouso tão completo devolvesse todas as coisas à sua situação real e vulgar.

A seguir, disse a si mesmo: Antes de baterem as sete e quinze, tenho que estar fora desta cama. De qualquer maneira, a essa hora já terá vindo alguém do escritório perguntar por mim, visto que abre antes das sete horas. E pôs-se a balouçar todo o corpo ao mesmo tempo, num ritmo regular, no intuito de rebocá-lo para fora da cama.

Caso se desequilibrasse naquela posição, podia proteger a cabeça de qualquer pancada erguendo-a num ângulo agudo ao cair. O dorso parecia ser duro e não era provável que se ressentisse de uma queda no tapete. A sua preocupação era o barulho da queda, que não poderia evitar, o qual, provavelmente, causaria ansiedade, ou mesmo terror, do outro lado e em todas as portas. Mesmo assim, devia correr o risco.

Quando estava quase fora da cama - o novo processo era mais um jogo que um esforço, dado que apenas precisava rebolar, balouçando-se para um lado e para outro -, veio-lhe à idéia como seria fácil se conseguisse ajuda. Duas pessoas fortes - pensou no pai e na criada - seriam largamente suficientes; não teriam mais que meter-lhe os braços por baixo do dorso convexo, levantá-lo para fora da cama, curvarem-se com o fardo e em seguida ter a paciência de colocá-lo direito no chão, onde era de esperar que as pernas encontrassem então a função própria. Bem, à parte o fato de todas as portas estarem fechadas à chave, deveria mesmo pedir auxílio? A despeito da sua infelicidade não podia deixar de sorrir ante a simples idéia de tentar.

Tinha chegado tão longe que mal podia manter o equilíbrio quando se balouçava com força e em breve teria de encher-se de coragem para a decisão final, visto que daí cinco minutos seriam sete e um quarto... Quando soou a campainha da porta. É alguém do escritório, disse, com os seus botões, e ficou quase rígido, ao mesmo tempo em que as pequenas pernas sé limitavam a agitar-se ainda mais depressa. Por instantes, tudo ficou silencioso. Não vão abrir a porta, disse Gregor, de si para si, agarrando-se a qualquer esperança irracional. A seguir, a criada foi à porta, como de costume, com o seu andar pesado e abriu-a. Gregor apenas precisou ouvir o primeiro bom dia do visitante para imediatamente saber quem era: o chefe de escritório em pessoa. Que sina, estar condenado a trabalhar numa firma em que a menor omissão dava imediatamente asa à maior das suspeitas! Seria que todos os empregados em bloco não passavam de malandros, que não havia entre eles um único homem devotado e leal que, tendo uma manhã perdido uma hora de trabalho na firma ou coisa parecida, fosse tão atormentado pela consciência que perdesse a cabeça e ficasse realmente incapaz de levantar-se da cama? Não teria bastado mandar um aprendiz perguntar - se era realmente necessária qualquer pergunta -, teria que vir o próprio chefe de escritório, dando assim a conhecer a toda a família, uma família inocente, que esta circunstância suspeita não podia ser investigada por ninguém menos versado nos negócios que ele próprio? E, mais pela agitação provocada por tais reflexões do que por qualquer desejo, Gregor rebolou com toda a força para fora da cama. Houve um baque sonoro, mas não propriamente um estrondo. A queda foi, até certo ponto, amortecida pelo tapete; também o dorso era menos duro do que ele pensava, de modo que foi apenas um baque surdo, nem por isso muito alarmante. Simplesmente, não tinha erguido a cabeça com cuidado suficiente e batera com ela; virou-a e esfregou-a no tapete, de dor e irritação.

- Alguma coisa caiu ali dentro - disse o chefe de escritório na sala contígua do lado esquerdo. Gregor tentou supor no seu íntimo que um dia poderia acontecer ao chefe de escritório qualquer coisa como a que hoje lhe acontecera a ele; ninguém podia negar que era possível. Como em brusca resposta a esta suposição, o chefe de escritório deu alguns passos firmes na sala ao lado, fazendo ranger as botas de couro envernizado. Do quarto da direita, a irmã segredava para informá-lo da situação:

- Gregor, está aqui o chefe de escritório.

Eu sei, murmurou Gregor, de si para si; mas não ousou erguer a voz o suficiente para a irmã o ouvir.

- Gregor - disse então o pai, do quarto à esquerda -, está aqui o chefe de escritório e quer saber porque é que não apanhou o primeiro trem. Não sabemos o que dizer pra ele. Além disso, ele quer falar contigo pessoalmente. Abre essa porta, faz-me o favor. Com certeza não vai reparar na desarrumação do quarto.

- Bom dia, Senhor Samsa -, saudava agora amistosamente o chefe de escritório.

- Ele não está bem - disse a mãe ao visitante, ao mesmo tempo em que o pai falava ainda através da porta -, ele não está bem, senhor, pode acreditar. Se assim não fosse, ele alguma vez ia perder um trem! O rapaz não pensa senão no emprego. Quase me zango com a mania que ele tem de nunca sair à noite; há oito dias que está em casa e não houve uma única noite que não ficasse em casa. Senta-se ali à mesa, muito sossegado, a ler o jornal ou a consultar horários de trens. O único divertimento dele é talhar madeira. Passou duas ou três noites a cortar uma moldurazinha de madeira; o senhor ficaria admirado se visse como ela é bonita. Está pendurada no quarto dele. Num instante vai vê-la, assim que o Gregor abrir a porta. Devo dizer que estou muito satisfeita por o senhor ter vindo. Sozinhos, nunca conseguiríamos que ele abrisse a porta; é tão teimoso... E tenho a certeza de que ele não está bem, embora ele não o reconhecesse esta manhã.

- Já vou - disse Gregor, lenta e cuidadosamente, não se mexendo um centímetro, com receio de perder uma só palavra da conversa.

- Não imagino qualquer outra explicação, minha senhora - disse o chefe de escritório. - Espero que não seja nada de grave. Embora, por outro lado, deva dizer que nós, homens de negócios, feliz ou infelizmente, temos muitas vezes de ignorar, pura e simplesmente, qualquer ligeira indisposição, visto que é preciso olhar pelo negócio.

- Bem, o chefe de escritório pode entrar? - perguntou impacientemente o pai de Gregor, tornando a bater à porta.

- Não - disse Gregor. Na sala da esquerda seguiu-se um doloroso silêncio a esta recusa, enquanto no compartimento da direita a irmã começava a soluçar.

Porque não se juntava a irmã aos outros? Provavelmente tinha-se levantado da cama há pouco tempo e ainda nem começara a vestir-se. Bem, porque chorava ela? Por ele não se levantar e não abrir a porta ao chefe de escritório, por ele estar em perigo de perder o emprego e porque o patrão havia de começar outra vez atrás dos pais para eles pagarem as velhas dívidas? Eram, evidentemente, coisas com as quais, nesse instante, ninguém tinha de preocupar-se. Gregor estava ainda em casa e nem por sombras pensava abandonar a família. É certo que, de momento, estava deitado no tapete e ninguém conhecedor da sua situação poderia seriamente esperar que abrisse a porta ao chefe de escritório. Mas, por tão pequena falta de cortesia, que poderia ser plausivelmente explicada mais tarde, Gregor não iria por certo ser despedido sem mais nem quê. E parecia-lhe que seria muito mais sensato deixarem-no em paz por agora do que atormentá-lo com lágrimas e súplicas. É claro que a incerteza e a desorientação deles desculpava aquele comportamento.

- Senhor Samsa - clamou então o chefe de escritório, em voz mais alta -, que se passa consigo? Fica aí enclausurado no quarto, respondendo só por sins e nãos, a dar uma série de preocupações desnecessárias aos seus pais e - diga-se de passagem - a negligenciar as suas obrigações profissionais de uma maneira incrível! Estou a falar em nome dos seus pais e do seu patrão e peco-lhe muito a sério uma explicação precisa e imediata. O senhor me espanta, me espanta. Julgava que o senhor era uma pessoa sossegada, em quem se podia ter confiança, e de repente parece apostado em fazer uma cena vergonhosa. Realmente, o patrão sugeriu-me esta manhã uma explicação possível para o seu desaparecimento - relacionada com o dinheiro dos pagamentos que recentemente lhe foi confiado - mas eu quase dei a minha solene palavra de honra de que não podia ser isso.

Agora, que vejo como o senhor é terrivelmente obstinado, não tenho o menor desejo de tomar a sua defesa. E a sua posição na firma não é assim tão inexpugnável. Vim com a intenção de dizer-lhe isto em particular, mas, visto que o senhor está a tomar tão desnecessariamente o meu tempo, não vejo razão para que os seus pais não ouçam igualmente. Desde há algum tempo que o seu trabalho deixa muito a desejar; esta época do ano não é ideal para uma subida do negócio, claro, admitamos isso, mas, uma época do ano para não fazer negócio absolutamente nenhum, essa não existe, Senhor Samsa, não pode existir.

- Mas, senhor - gritou Gregor, fora de si e, na sua agitação, esquecendo todo o resto -, vou abrir a porta agora mesmo. Tive uma ligeira indisposição, um ataque de tonturas, que não me permitiu levantar-me. Ainda estou na cama. Mas me sinto bem outra vez. Estou a levantar-me agora. Dê-me só mais um minuto ou dois! Não estou, realmente, tão bem como pensava. Mas estou bem, palavra. Como uma coisa destas pode repentinamente deitar uma pessoa abaixo. Ainda ontem à noite estava perfeitamente, os meus pais que o digam; ou, antes, de fato, tive um leve pressentimento. Deve ter mostrado indícios disso. Porque não o comuniquei eu ao escritório! Mas uma pessoa pensa sempre que uma indisposição há de passar sem ficar em casa. Olha, senhor, poupe os meus pais! Tudo aquilo por que me repreende não tem qualquer fundamento; nunca ninguém me disse uma palavra sobre isso. Talvez o senhor não tenha visto as últimas encomendas que mandei. De qualquer maneira, ainda posso apanhar o trem das oito; estou muito melhor depois deste descanso de algumas horas. Não se prenda por mim, senhor; daqui a pouco vou para o escritório e hei de estar suficientemente bom para o dizer ao patrão e apresentar-lhe desculpas!

Ao mesmo tempo em que tudo isto lhe saía tão desordenadamente de jacto que Gregor mal sabia o que estava a dizer, havia chegado facilmente à cômoda, talvez devido à prática que tinha tido na cama, e tentava agora erguer-se em pé, socorrendo-se dela. Tencionava, efetivamente, abrir a porta, mostrar-se realmente e falar com o chefe de escritório; estava ansioso por saber, depois de todas as insistências, o que diriam os outros ao vê-lo à sua frente. Se ficassem horrorizados, a responsabilidade já não era dele e podia ficar quieto. Mas, se o aceitassem calmamente, também não teria razão para preocupar-se, e podia realmente chegar à estação a tempo de apanhar o trem das oito, se andasse depressa. A princípio escorregou algumas vezes pela superfície envernizada da cômoda, mas, aos poucos, com uma última elevação, pôs-se de pé; embora o atormentassem, deixou de ligar importância às dores na parte inferior do corpo. Depois deixou-se cair contra as costas de uma cadeira próxima e agarrou-se às suas bordas com as pequenas pernas. Isto devolveu-lhe o controlo sobre si mesmo e parou de falar, porque agora podia prestar atenção ao que o chefe de escritório estava a dizer.

- Perceberam uma única palavra? - perguntava o chefe de escritório. - Com certeza não está a tentar fazer de nós parvos?

- Oh, meu Deus - exclamou a mãe, lavada em lágrimas -, talvez ele esteja terrivelmente doente e estejamos a atormentá-lo. Grete! Grete! - chamou a seguir.

- Sim, mãe? - respondeu a irmã do outro lado. Chamavam uma pela outra através do quarto de Gregor.

- Tens de ir imediatamente chamar o médico. O Gregor está doente. Vai chamar o médico, depressa. Ouviste como ele estava a falar?

- Aquilo não era voz humana - disse o chefe de escritório, numa voz perceptivelmente baixa ao lado da estridência da mãe.

- Ana! Ana! - chamava o pai, através da parede para a cozinha, batendo as palmas -, chama imediatamente um serralheiro!

E as meninas corriam pelo corredor, com um silvo de saias - como podia a irmã ter-se vestido tão depressa?-, e abriam a porta da rua de par em par. Não se ouviu o som da porta a ser fechada a seguir; tinham-na deixado, evidentemente, aberta, como se faz em casas onde aconteceu uma grande desgraça.

Mas Gregor estava agora muito mais calmo. As palavras que pronunciava já não eram inteligíveis, aparentemente, embora a ele lhe parecessem distintas, mais distintas mesmo que antes, talvez porque o ouvido se tivesse acostumado ao som delas. Fosse como fosse, as pessoas julgavam agora que ele estava mal e estavam prontas a ajudá-lo. A positiva certeza com que estas primeiras medidas tinham sido tomadas confortou-o. Sentia-se uma vez mais impelido para o círculo humano e confiava em grandes e notáveis resultados, quer do médico, quer do serralheiro, sem, na verdade, conseguir fazer uma distinção clara entre eles. No intuito de tornar a voz tão clara quanto possível para a conversa que estava agora iminente, tossiu um pouco, o mais silenciosamente que pôde, claro, uma vez que também o ruído podia não soar como o da tosse humana, tanto quanto podia imaginar. Entrementes, na sala contígua havia completo silêncio. Talvez os pais estivessem sentados à mesa com o chefe de escritório, a segredar, ou talvez se encontrassem todos encostados à porta, à escuta.

Lentamente, Gregor empurrou a cadeira em direção à porta, após o que a largou, agarrou-se à porta para se amparar as plantas das extremidades das pequenas pernas eram levemente pegajosas- e descansou, apoiado contra ela por um momento, depois destes esforços. A seguir empenhou-se em rodar a chave na fechadura, utilizando a boca. Infelizmente, parecia que não possuía quaisquer dentes - com que havia de segurar a chave?-, mas, por outro lado, as mandíbulas eram indubitavelmente fortes; com a sua ajuda, conseguiu pôr a chave em movimento, sem prestar atenção ao fato de estar certamente a danificá-las em qualquer zona, visto que lhe saía da boca um fluído castanho, que escorria pela chave e pingava para o chão.

- Ouçam só - disse o chefe de escritório na sala contígua - esta dando volta na chave .

Isto foi um grande encorajamento para Gregor; mas todos deviam tê-lo animado com gritos de encorajamento, o pai e a mãe também: Não, Gregor, deviam todos ter gritado, - Continua, agarra-te bem a essa chave! E, na crença de que estavam todos a seguir atentamente os seus esforços, cerrou imprudentemente as mandíbulas na chave com todas as forças de que dispunha. À medida que a rotação da chave progredia, ele torneava a fechadura, segurando-se agora só com a boca, empurrando a chave, ou puxando-a para baixo com todo o peso do corpo, consoante era necessário. O estalido mais sonoro da fechadura, finalmente a ceder, apressou literalmente Gregor. Com um fundo suspiro de alívio, disse, de si para si: Afinal, não precisei do serralheiro, e encostou a cabeça ao puxador, para abrir completamente a porta.

Como tinha de puxar a porta para si, manteve-se oculto, mesmo quando a porta ficou escancarada. Teve de deslizar lentamente para contornar a portada mais próxima da porta dupla, manobra que lhe exigiu grande cuidado, não fosse cair em cheio de costas, mesmo ali no limiar. Estava ainda empenhado nesta operação, sem ter tempo para observar qualquer outra coisa, quando ouviu o chefe de escritório soltar um agudo Oh!, que mais parecia um rugido do vento; foi então que o viu, de pé junto da porta, com uma mão a tremer tapando a boca aberta e recuando, como se impelido por qualquer súbita força invisível. A mãe, que apesar da presença do chefe de escritório tinha o cabelo ainda em desalinho, espetado em todas as direções, começou por retorcer as mãos e olhar para o pai, após o que deu dois passos em direção a Gregor e tombou no chão, num torvelinho de saias, o rosto escondido no peito. O pai cerrou os punhos com um ar cruel, como se quisesse obrigar Gregor a voltar para o quarto com um murro; depois, olhou perplexo em tomo da sala de estar, cobriu os olhos com as mãos e desatou a chorar, o peito vigoroso sacudido por soluços.

Gregor não entrou na sala, mantendo-se encostado à parte interior da portada fechada, deixando apenas metade do corpo à vista, a cabeça a tombar para um e outro lado, por forma a ver os demais. Entretanto, a manhã tornara-se mais límpida. Do outro lado da rua, divisava-se nitidamente uma parte do edifício cinzento-escuro, interminavelmente comprido, que era o hospital, abruptamente interrompido por uma fila de janelas iguais. Chovia ainda, mas eram apenas grandes pingos bem visíveis que caíam literalmente um a um. Sobre a mesa espalhava-se a louça do breve almoço, visto que esta era para o pai de Gregor a refeição mais importante, que prolongava durante horas percorrendo diversos jornais. Mesmo em frente de Gregor, havia uma fotografia pendurada na parede que o mostrava fardado de tenente, no tempo em que fizera o serviço militar, a mão na espada e um sorriso despreocupado na face, que impunha respeito pelo uniforme e pelo seu porte militar. A porta que dava para o vestíbulo estava aberta, vendo-se também aberta a porta de entrada, para além da qual se avistava o terraço de entrada e os primeiros degraus da escada.

- Bem - disse Gregor, perfeitamente consciente de ser o único que mantinha uma certa compostura -, vou me vestir, embalar as amostras e sair. Desde que o senhor me dê licença que saia. Como vê, não sou obstinado e tenho vontade de trabalhar. A profissão de caixeiro- viajante é dura, mas não posso viver sem ela. Para onde vai o senhor? Para o escritório? Sim? Não se importa de contar lá exatamente o que aconteceu? Uma pessoa pode estar temporariamente incapacitada, mas essa é a altura indicada para recordar os seus serviços anteriores e ter em mente que mais tarde, vencida a incapacidade, a pessoa certamente trabalhará com mais diligência e concentração. Tenho uma dívida de lealdade para com o patrão, como o senhor bem sabe. Além disso, tenho de olhar pelos meus pais e pela minha irmã. Estou a passar por uma situação difícil, mas acabarei vencendo. Não me torne as coisas mais complicadas do que elas já são. Eu bem sei que os caixeiros-viajantes não são muito bem vistos no escritório. As pessoas pensam que eles levam uma vida estupenda e ganham rios de dinheiro. Trata-se de um preconceito que nenhuma razão especial leva a reconsiderar. Mas o senhor vê as coisas profissionais de uma maneira mais compreensiva do que o resto do pessoal, isso vê, aqui para nós, deixe que lhe diga, mais compreensiva do que o próprio patrão, que, sendo o proprietário, facilmente se deixa influenciar contra qualquer dos empregados. E o senhor bem sabe que o caixeiro-viajante, que durante todo o ano raramente está no escritório, é muitas vezes vítima de injustiças, do azar e de queixas injustificadas, das quais normalmente nada sabe, a não ser quando regressa, exausto das suas deslocações, e só nessa altura sofre pessoalmente as suas funestas conseqüências; para elas, não consegue descobrir as causas originais. Peço-lhe, por favor, que não se vá embora sem uma palavra sequer que mostre que me dá razão, pelo menos em parte!

Logo às primeiras palavras de Gregor, o chefe de escritório recuara e limitava-se a fitá-lo embasbacado, retorcendo os lábios, por cima do ombro crispado. Enquanto Gregor falava, não estivera um momento quieto, procurando, sem tirar os olhos de Gregor, esgueirar-se para a porta, centímetro a centímetro, como se obedecesse a qualquer ordem secreta para abandonar a sala. Estava junto ao vestíbulo, e a maneira súbita como deu um último passo para sair da sala de estar levaria a crer que tinha posto o pé em cima duma brasa. Chegado ao vestíbulo, estendeu o braço direito para as escadas, como se qualquer poder sobrenatural ali o aguardasse para libertá-lo.

Gregor apercebeu-se de que, se quisesse que a sua posição na firma não corresse sérios risco não podia de modo algum permitir que o chefe de escritório saísse naquele estado ? de espírito. Os pais não ligavam tão bem deste acontecimento; tinham-se convencido, ao longo dos anos, de que Gregor estava instalado na firma para toda a vida e, além disso, estavam tão consternados com as suas preocupações imediatas que nem lhes corria pensar no futuro. Gregor, porém, pensava. Era preciso deter, acalmar, persuadir e, por fim, conquistar o chefe de escritório. Quer o seu futuro, quer o da família, dependiam disso! Se, ao menos, a irmã ali estivesse! Era inteligente; começara a chorar quando Gregor estava ainda deitado de costas na cama. E por certo o chefe de escritório, parcial como era em relação às mulheres, acabaria se deixando levar por ela. Ela teria fechado a porta de entrada e, no vestíbulo, dissiparia o horror. Mas ela não estava e Gregor teria de enfrentar sozinho a situação. E, sem refletir que não sabia ainda de que capacidade de movimentos dispunha, sem se lembrar sequer de que havia todas as possibilidades, e até todas as probabilidades, de as suas palavras serem mais uma vez ininteligíveis, afastou-se do umbral da porta, deslizou pela abertura e começou a encaminhar-se para o chefe de escritório, que estava agarrado com ambas as mãos ao corrimão da escada para o terraço; subitamente, ao procurar apoio, Gregor tombou, com um grito débil, por sobre as inúmeras pernas. Mas, chegado a essa posição, experimentou pela primeira vez nessa manhã uma sensação de conforto físico. Tinha as pernas em terra firme; obedeciam-lhe completamente, conforme observou com alegria, e esforçavam-se até por impeli-lo em qualquer direção que pretendesse. Sentia-se tentado a pensar que estava ao seu alcance um alívio final para todo o sofrimento. No preciso momento em que se encontrou no chão, balançando-se com sofrida ânsia para mover-se, não longe da mãe, na realidade mesmo defronte dela, esta, que parecia até aí completamente aniquilada, pôs-se de pé de um salto, de braços e dedos estendidos, aos gritos: Socorro, por amor de Deus, socorro! Baixou a cabeça, como se quisesse observar melhor Gregor, mas, pelo contrário, continuou a recuar em disparada e, esquecendo-se de que tinha atrás de, si a mesa ainda posta, sentou-se precipitadamente nela, como se tivesse perdido momentaneamente a razão, ao esbarrar contra o obstáculo imprevisto. Parecia igualmente indiferente ao acontecimento de a cafeteira que tinha ter tombado e estava derramando um fio sinuoso de café no tapete.

- Mãe, mãe - murmurou Gregor, erguendo a vista para ela.

Nessa altura, o chefe de escritório estava já completamente tresloucado; Gregor, não resistiu ao ver o café a correr, cerrou as mandíbulas com um estalo. Isto fez com que a mãe gritasse outra vez, afastando-se precipitadamente da mesa e atirando-se para os braços do pai, que se apressou a acolhê-la. Mas agora Gregor não tinha tempo a perder com os pais. O chefe de escritório nas escadas; com o queixo apoiado no corrimão, dava uma última olhadela para trás de si. Gregor deu um salto, para ter melhor a certeza de ultrapassá-lo; o chefe de escritório devia ter-lhe adivinhado as intenções, pois, de um salto, venceu vários degraus e desapareceu, sempre aos gritos, que ressoavam pelas escadas.

Infelizmente a fuga do chefe de escritório pareceu pôr o pai de Gregor completamente fora de si, embora até então se tivesse mantido relativamente calmo. Assim, em lugar de correr atrás do homem ou de, pelo menos, não interferir na perseguição de Gregor, agarrou com a mão direita na bengala que o chefe de escritório tinha deixado numa cadeira, juntamente com um chapéu e um sobretudo, e, com a esquerda, num jornal que estava em cima da mesa e, batendo com os pés e brandindo a bengala e o jornal, tentou forçar Gregor a regressar ao quarto. De nada valeram os rogos de Gregor, que, aliás, nem sequer eram compreendidos; por mais que baixasse humildemente a cabeça, o pai limitava-se a bater mais fortemente com os pés no chão. Por trás do pai, a mãe tinha escancarado uma janela, apesar do frio, e debruçava-se a ela segurando a cabeça com as mãos. Uma rajada de vento penetrou pelas escadas, agitando as cortinas da janela e agitando os jornais que estavam sobre a mesa, o que fez que se espalhassem algumas páginas pelo chão. Impiedosamente, o pai de Gregor obrigava-o a recuar, assobiando e gritando como um selvagem. Mas Gregor estava pouco habituado a andar para trás, o que se revelou um processo lento. Se tivesse uma oportunidade de virar sobre si mesmo, poderia alcançar imediatamente o quarto, mas receava exasperar o pai com a lentidão de tal manobra e temia que a bengala que o pai brandia na mão pudesse desferir-lhe uma pancada fatal no dorso ou na cabeça. Finalmente, reconheceu que não lhe restava alternativa, pois verificou, aterrorizado, que, ao recuar, nem sequer conseguia controlar a direção em que se deslocava-se, assim, sempre observando ansiosamente o pai, de soslaio, começou a virar o mais rapidamente que pôde, o que, na realidade, era muito moroso. Talvez o pai tivesse registrado as suas boas intenções, visto que não interferiu, a não ser para, de quando em quando e à distância, lhe auxiliar a manobra com a ponta da bengala. Se ao menos ele parasse com aquele insuportável assobio! Era uma coisa que estava a pontos de fazê-lo perder a cabeça. Quase havia completado a rotação quando o assobio o desorientou de tal modo que tornou a virar ligeiramente na direção errada. Quando, finalmente, viu a porta em frente da cabeça, pareceu-lhe que o corpo era demasiadamente largo para poder passar pela abertura. É claro que o pai, no estado de espírito atual, estava bem longe de pensar em qualquer coisa que se parecesse com abrir a outra portada, para dar espaço à passagem de Gregor. Dominava-o a idéia fixa de fazer Gregor regressar para o quarto o mais depressa possível. Não agüentaria de modo algum que Gregor se entregasse aos preparativos de erguer o corpo e talvez deslizar através da porta. Nesta altura, o pai estava porventura a fazer mais barulho que nunca para obrigá-lo a avançar, como se não houvesse obstáculo nenhum que o impedisse; fosse como fosse, o barulho que Gregor ouvia atrás de si não lhe soava aos ouvidos como a voz de pai nenhum. Não sendo caso para brincadeiras, Gregor lançou-se, sem se preocupar com as conseqüências, pela abertura da porta. Um dos lados do corpo ergueu-se e Gregor ficou entalado no umbral da porta ferindo-se no flanco, que cobriu a porta branca de horrorosas manchas. Não tardou em ficar completamente preso, de tal modo que, por si só, não poderia mover-se, com as pernas de um dos lados a agitarem-se tremulamente no ar e as do outro penosamente esmagadas de encontro ao soalho. Foi então que o pai lhe deu um violento empurrão, que constituiu literalmente um alívio, e Gregor voou até ao meio do quarto, sangrando abundantemente. Empurrada pela bengala, a porta fechou-se violentamente atrás de si e, por fim, fez-se o silêncio.

II

Foi apenas ao anoitecer que Gregor acordou do seu sono profundo, que mais parecera um desmaio. Ainda que nada o tivesse feito, de certo teria acordado pouco mais tarde por si só, visto que se sentia suficientemente descansado e bem dormido, mas parecia-lhe ter sido despertado por um andar cauteloso e pelo fechar da porta que dava para o vestíbulo. Os postes da rua projetavam aqui e além um reflexo pálido, no teto e na parte superior dos móveis, mas ali em baixo, no local onde se encontrava, estava escuro. Lentamente, experimentando de modo desajeitado as antenas, cuja utilidade começava pela primeira vez a apreciar, arrastou-se até à porta, para ver o que acontecera. Sentia todo o flanco esquerdo convertido numa única cicatriz, comprida e incomodamente repuxada, e tinha efetivamente de coxear sobre as duas filas de pernas. Uma delas ficara gravemente atingida pelos acontecimentos dessa manhã - era quase um milagre ter sido afetada apenas uma e arrastava-se, inútil, atrás de si.

Só depois de chegar à porta percebeu o que o tinha atraído para ela: o cheiro da comida. Com efeito, tinham lá posto uma tigela de leite dentro do qual flutuavam pedacinhos de pão. Quase desatou a rir de contentamento, porque sentia ainda mais fome que de manhã, e imediatamente enfiou a cabeça no leite, quase mergulhando também os olhos. Depressa, a retirou, desanimado: além de ter dificuldade em comer, por causa do flanco esquerdo magoado, que o obrigava a ingerir a comida à força de sacudidelas, recorrendo a todo o corpo, não gostava do leite, conquanto tivesse sido a sua bebida preferida e fosse certamente essa a razão que levara a irmã a pôr-lho ali, Efetivamente, foi quase com repulsa que se afastou da tigela e se arrastou até meio do quarto.

Através da fenda da porta, verificou que tinham acendido o gás na sala de estar. Embora àquela hora o pai costumasse ler o jornal em voz alta para a mãe e eventualmente também para a irmã, nada se ouvia. Bom, talvez o pai tivesse recentemente perdido o hábito de ler em voz alta, hábito esse que a irmã tantas vezes mencionara em conversa e por carta. Mas por todo o lado reinava o mesmo silêncio, embora por certo estivesse alguém em casa. Que vida sossegada a minha família tem levado! , disse Gregor, de si para si. Imóvel, a fitar a escuridão, sentiu naquele momento um grande orgulho por ter sido capaz de proporcionar aos pais e à irmã uma tal vida numa casa tão boa. Mas que sucederia se toda a calma, conforto e satisfação acabas sem em catástrofe? Tentando não se perder em pensamentos, Gregor refugiou-se no exercício físico e começou a rastejar para um lado e para o outro, ao longo do quarto.

A certa altura, durante o longo fim de tarde, viu as portas laterais abrir-se ligeiramente e ser novamente fechada; mais tarde, sucedeu o mesmo com a porta do outro lado. Alguém pretendera entrar e mudara de idéias. Gregor resolveu postar-se ao pé da porta que dava para a sala de estar, decidido a persuadir qualquer visitante indeciso a entrar ou, pelo menos, a descobrir quem poderia ser. Mas esperou em vão, pois ninguém tornou a abrir a porta. De manhã cedo, quando todas as portas estavam fechadas à chave, todos tinham querido entrar; agora, que ele tinha aberto uma porta e a outra fora aparentemente aberta durante o dia, ninguém entrava e até as chaves tinham sido transferidas para o lado de fora das portas.

Só muito tarde apagaram o gás na sala; Gregor tinha quase a certeza de que os pais e a irmã tinham ficado acordados até então, pois ouvia-os afastarem-se, caminhando nos bicos dos pés. Não era nada provável que alguém viesse visitá-lo até à manhã seguinte, de modo que tinha tempo de sobra para meditar sobre a maneira de reorganizar a sua vida. O enorme quarto vazio dentro do qual era obrigado a permanecer deitado no chão enchia-o de uma apreensão cuja causa não conseguia descobrir, pois havia cinco anos que o habitava. Meio inconscientemente, não sem uma leve sensação de vergonha, meteu-se debaixo do sofá, onde imediatamente se sentiu bem, embora ficasse com o dorso um tanto comprimido e não lhe fosse possível levantar a cabeça, lamentando apenas que o corpo fosse largo de mais para caber totalmente debaixo do sofá.

Ali passou toda a noite, grande parte da qual mergulhado num leve torpor, do qual a fome constantemente o despertava com um sobressalto, preocupando-se ocasionalmente com a sua sorte e alimentando vagas esperanças, que levavam todas à mesma conclusão: devia deixar-se estar e, usando de paciência e do mais profundo respeito, auxiliar a família a suportar os incômodos que estava destinado a causar-lhes nas condições presentes.

De manhã bem cedo, Gregor teve ocasião de pôr à prova o valor das suas recentes resoluções, dado que a irmã, quase totalmente vestida, abriu a porta que dava para o vestíbulo e espreitou para dentro do quarto. Não o viu imediatamente, mas, ao apercebê-lo debaixo do sofá - que diabo, tinha de estar em qualquer sítio, não havia de ter-se sumido, pois não? -, ficou de tal modo assustada que fugiu precipitadamente, batendo com a porta. Mas, teria que arrependida desse comportamento, tornou a abrir a porta e entrou nos bicos dos pés, como se estivesse de visita a um inválido ou a um estranho. Gregor estendeu a cabeça para fora do sofá e ficou a observá-la. Notaria a irmã que ele deixara o leite intacto, não por falta de fome, e traria qualquer outra comida que lhe agradasse mais ao paladar? Se ela o não fizesse de moto próprio, Gregor preferiria morrer de fome a chamar-lhe a atenção para o acontecimento, muito embora sentisse um irreprimível desejo de saltar do seu refúgio debaixo do sofá e rojar-se-lhe aos pés, pedindo de comer. A irmã notou imediatamente, com surpresa, que a tigela estava ainda cheia, à exceção de uma pequena porção de leite derramado em tomo dela; ergueu logo a tigela, não diretamente com as mãos, é certo, mas sim com um pano, e levou-a. Gregor sentia uma enorme curiosidade de saber o que traria ela em sua substituição, multiplicando conjecturas. Não poderia de modo algum adivinhar o que a irmã, em toda a sua bondade, fez a seguir. Para descobrir do que gostaria ele, trouxe-lhe toda uma quantidade de alimentos, sobre um pedaço velho de jornal. Eram hortaliças velhas e meio podres, ossos do jantar da noite anterior, cobertos de um molho branco solidificado; uvas e amêndoas, era um pedaço de queijo que Gregor dois dias antes teria considerado intragável, era uma côdea de pão duro, um pão com manteiga sem sal e outro com manteiga salgada. Além disso, tornou a pôr no chão a mesma tigela, dentro da qual deixou água, e que pelos vistos ficaria reservada para seu exclusivo uso. Depois, cheia de tacto, percebendo que Gregor não comeria na sua presença, afastou-se rapidamente e deu mesmo volta chave, dando-lhe a entender que podia ficar completamente à vontade. Todas as pernas de Gregor se precipitaram em direção à comida. As feridas deviam estar completamente curadas, além de tudo, porque não sentia qualquer incapacidade, o que o espantou e o fez lembrar-se de que havia mais de um mês tinha feito um golpe num dedo com uma faca e ainda dois dias antes lhe doía a ferida. - Estarei agora menos sensível? Pensou, ao mesmo tempo em que sugava vorazmente o queijo, que, de toda a comida, era a que mais forte e imediatamente o atraía. Pedaço a pedaço, com lágrimas de satisfação nos olhos, devorou rapidamente o queijo, as hortaliças e o molho; por outro lado, a comida fresca não tinha atrativos para si; não podia sequer suportar-lhe o cheiro, que o obrigava até a arrastar para uma certa distância os pedaços que era capaz de comer. Tinha acabado de comer havia bastante tempo e estava apenas preguiçosamente quieto no mesmo local, quando a irmã rodou lentamente a chave como que a fazer-lhe sinal para se retirar. Isto fez com que ele se levantasse de súbito, embora estivesse quase adormecido, e precipitar-se novamente para debaixo do sofá. Foi-lhe necessária uma considerável dose de autodomínio para permanecer ali debaixo, dado que a pesada refeição lhe tinha feito inchar um tanto o corpo e estava tão comprido que mal podia respirar, Atacado de pequenos surtos de sufocação, sentia os olhos saírem um bocado para fora da cabeça ao observar a irmã, que de nada suspeitava, varrendo não apenas os restos do que comera, mas também as coisas em que não tocara, como se não fossem de utilidade fosse para quem fosse, e metendo-as, apressadamente, com a pá, num balde, que cobriu com uma tampa de madeira e retirou do quarto. Mal a irmã virou costas, Gregor saiu de baixo do sofá, dilatando e esticando o corpo.

Assim era Gregor alimentado, uma vez de manhã cedo, enquanto os pais e a criada estavam ainda a dormir, e outra vez depois de terem todos almoçado, pois os país faziam uma curta sesta e a irmã podia mandar a criada fazer um ou outro recado. Não que eles desejassem que ele morresse de fome, claro está, mas talvez porque não pudessem suportar saber mais sobre as suas refeições do que aquilo que sabiam pela boca da irmã, e talvez ainda porque a irmã os quisesse poupar a todas as preocupações, por menores que fossem, visto o que eles tinham de suportar ser mais do que suficiente. Uma coisa que Gregor nunca pôde descobrir foi que pretexto tinha sido utilizado para se libertarem do médico e do serralheiro na primeira manhã, já que, como ninguém compreendia o que ele dizia, nunca lhes passara pela cabeça, nem sequer à irmã, que ele pudesse percebê-los; assim, sempre que a irmã ia ao seu quarto, Gregor contentava-se em ouvi-la soltar um ou outro suspiro ou exprimir uma ou outra invocação aos seus santos. Mais tarde, quando se acostumou um pouco mais à situação - é claro que nunca poderia acostumar-se inteiramente -, fazia por vezes uma observação que revelava uma certa simpatia, ou que como tal podia ser interpretada. - Bom, hoje ele gostou do jantar - disse enquanto Gregor tinha consumido boa parte da comida; quando ele não comia, o que ia acontecendo com freqüência cada vez maior, dizia, quase com tristeza: - Hoje tornou a deixar tudo.

Embora não pudesse manter-se diretamente a par do que ia acontecendo, Gregor apanhava, muitas conversas nas salas contíguas e, assim que elas se tornavam audíveis, corria para a porta em questão, colando-se todo a ela. Durante os primeiros dias, especialmente, não havia conversa alguma que se lhe não referisse de certo modo, ainda que indiretamente. Durante dois dias houve deliberações familiares sobre o que devia fazer-se; mas o assunto era igualmente discutido fora das refeições visto que estavam sempre, pelo menos, dois membros da família em casa: ninguém queria ficar lá sozinho e deixá-la sem ninguém estava inteiramente fora da questão. Logo nos primeiros dias, a criada, cujo verdadeiro conhecimento da situação não era para Gregor perfeitamente claro, caíra de joelhos diante da mãe, suplicando-lhe que a deixasse ir embora. Quando saiu, um quarto de hora mais tarde, agradeceu de lágrimas nos olhos o favor de ter sido dispensada, como se fosse a maior graça que pudesse ser-lhe concedida e, sem que ninguém lho sugerisse, prestou um solene juramento de que nunca contaria a ninguém o que se passara.

Agora a irmã era também obrigada a cozinhar para ajudar a mãe. É certo que não era trabalho de monta, pois pouco se comia naquela casa. Gregor ouvia constantemente um dos membros da família a insistir com outro para que comesse e a receber invariavelmente a resposta: Não, muito obrigado, estou satisfeito, ou coisa semelhante. Talvez não bebessem, sequer. Muitas vezes a irmã perguntava ao pai se não queria cerveja e oferecia-se amavelmente para lha ir comprar; se ele não respondia, dava a entender que podia pedir à porteira que fosse buscá-la, para que ele não se sentisse em dívida, mas nessa altura o pai retorquia com um rotundo: Não! e ficava o assunto arrumado.

Logo no primeiro dia, o pai explicara a situação financeira e as perspectivas da família a mãe e a irmã. De quando em quando, erguia-se da cadeira para ir buscar qualquer recibo ou apontamento a um pequeno cofre que tinha conseguido salvar do colapso financeiro em que mergulhara cinco anos atrás. Ouviam-no abrir a complicada fechadura e a remexer em papéis, depois a fechá-la novamente. Tais informações do pai foram as primeiras notícias agradáveis que Gregor teve desde o início do cativeiro. Sempre julgara que o pai tinha perdido tudo, ou, pelo menos, o pai nunca dissera nada em contrário e é evidente que Gregor nunca lho perguntara diretamente. Na altura em que a ruína tinha desabado sobre o pai, o único desejo de Gregor era fazer todos os possíveis para que a família se esquecesse com a maior rapidez de tal catástrofe, que mergulhara todos no mais completo desespero. Assim, começara a trabalhar com invulgar ardor e, quase de um dia para outro, passou de simples empregado de escritório a caixeiro-viajante, com oportunidades conseguiu entre melhores de ganhar bem, êxito esse que depressa se converteu em metal sonante que depositava na mesa, ante a surpresa e a alegria da família. Tinha sido uma época feliz, que nunca viria a ser igualada, embora mais tarde Gregor ganhasse o suficiente para sustentar inteiramente a casa. Tinham-se, pura e simplesmente, habituado ao acontecimento, tanto a família corno ele próprio: ele dava o dinheiro de boa vontade e eles aceitavam-no com gratidão, mas não havia qualquer efusão de sentimentos. Só com a irmã mantivera uma certa intimidade, alimentando a secreta esperança de poder mandá-la para o Conservatório no ano seguinte, apesar das grandes despesas que isso acarretaria, às quais de qualquer maneira haveria de fazer face, já que ela, ao contrário de Gregor, gostava imenso de música e tocava violino de tal modo que comovia quantos a ouviam. Durante os breves dias que passava em casa, falava muitas vezes do Conservatório nas conversas com a irmã, mas sempre apenas como um belo sonho irrealizável; quanto aos pais, procuravam até evitar essas inocentes referências à questão. Gregor tomara a firme decisão de levar a idéia avante e tencionava anunciar solenemente o acontecimento no dia de Natal.

Essas eram as idéias - completamente fúteis, na sua atual situação - que lhe povoavam a mente enquanto se mantinha ereto, encostado à porta, à escuta. Por vezes, o cansaço obrigava-o a interrompê-la, limitando-se então a encostar a cabeça à porta, mas imediatamente obrigado a endireitar-se de novo, pois até o leve ruído que fazia ao mexer a cabeça era audível na sala ao lado e fazia parar todas as conversas. Que estará ele a fazer agora, perguntou o pai decorridos alguns instantes, virando-se decerto para a porta; só então ressuscitava gradualmente a conversa antes interrompida.

Dado que o pai se tomava repetitivo nas explicações - por um lado, devido ao acontecimento de há muito não se encarregar de tais assuntos; por outro, graças à circunstância de a mãe nem sempre perceber tudo à primeira - , Gregor ficou por fim a saber que um certo número de investimentos, poucos, é certo, tinham escapado à ruína e tinham até aumentado ligeiramente, pois, entretanto, ninguém tocara nos dividendos. Além disso, nem todo o dinheiro dos ordenados mensais de Gregor - de que guardava para si apenas uma pequena parte - tinha sido gasto, o que originara economias que constituíam um pequeno capital. Do outro lado da porta, Gregor acenava ansiosamente com a cabeça, satisfeito perante aquela demonstração de inesperado espírito de poupança e previsão. A verdade é que, com aquele dinheiro suplementar, podia ter pago uma porção maior da dívida do pai ao patrão, apressando assim o dia em que poderia deixar o emprego, mas sem dúvida o pai fizera muito melhor assim.

Apesar de tudo, aquele capital não era de modo nenhum suficiente para que a família vivesse dos juros. Talvez o pudessem fazer durante um ano ou dois, quando muito. Era, pura e simplesmente, uma quantia que urgia deixar de parte para qualquer emergência. Quanto ao dinheiro para fazer face às despesas normais, havia que ganhá-lo. o pai era ainda saudável, mas estava velho e não trabalhava havia cinco anos, pelo que não era de esperar que fizesse grande coisa. Ao longo desses cinco anos, os primeiros anos de lazer de uma vida de trabalho, ainda que mal sucedido, tinha engordado e tornara-se um tanto lento. Quanto à velha mãe, como poderia ganhar a vida com aquela asma, que até o simples andar agravava, obrigando-a muitas vezes a deixar-se cair num sofá, a arquejar junto de uma janela aberta? E seria então justo encarregar do sustento da casa a irmã, ainda uma criança com os seus dezessete anos e cuja vida tinha até aí sido tão agradável e se resumia a vestir-se bem, dormir bastante tempo, ajudar a cuidar da casa, ir de vez em quando a diversões modestas e, sobretudo, tocar violino? A principio, sempre que ouvia menções à necessidade de ganhar dinheiro, Gregor afastava-se da porta e deixava-se cair no fresco sofá de couro ao lado dela, rubro de vergonha e desespero.

Muitas vezes ali se deixava estar durante toda a noite, sem dormir a esfregar-se no couro, durante horas a fio. Quando não, reunia a coragem necessária para se entregar ao violento esforço de empurrar uma cadeira de braços para junto da janela, trepava para o peitoril e, arrimando-se à cadeira, encostava-se às vidraças, certamente obedecendo a qualquer reminiscência da sensação de liberdade que sempre experimentava ao ver à janela. De fato, dia após dia, até as coisas que estavam relativamente pouco afastadas se tornavam pouco nítidas; o hospital do outro lado da rua, que antigamente odiava por ter sempre à frente dos olhos, ficava agora bastante para além do seu alcance visual e, se não soubesse que vivia ali, numa rua sossegada, de qualquer maneira, uma rua de cidade, bem poderia julgar que a janela dava para um terreno deserto onde o cinzento do céu e da terra se fundiam indistintamente. Esperta como era, a irmã só precisou ver duas vezes a cadeira junto da janela: a partir de então, sempre que acabava de arrumar o quarto, tornava a colocar a cadeira no mesmo, sítio e até deixava as portadas interiores da janela abertas.

Se ao menos pudesse falar com ela e agradecer-lhe tudo o que fazia por ele, suportaria melhor os seus cuidados; mas naquelas condições, sentia-se oprimido. É certo que ela tentava fazer, o mais despreocupadamente possível, tudo o que lhe fosse desagradável, o que, com o correr do tempo, cada vez o conseguia melhor, mas também Gregor, aos poucos, se ia apercebendo mais lucidamente da situação. Bastava a maneira de ela entrar para o angustiar. Mal penetrava no quarto, corria para a janela, sem sequer dar-se ao trabalho de fechar a porta atrás de si, apesar do cuidado que costumam ter em ocultar aos outros a visão de Gregor, e, como se estivesse pontos de sufocar, abria precipitadamente a janela e ali ficava a apanhar ar durante um minuto, por mais frio que fizesse, respirando profundamente. Duas vezes por dia, incomodava Gregor com a sua ruidosa precipitação, que o fazia refugiar-se, a tremer, debaixo do sofá, durante todo o tempo, ciente de que a irmã certamente o pouparia a tal incômodo se lhe fosse possível permanecer na sua presença sem abrir a janela.

Certa vez, coisa de um mês após a metamorfose de Gregor, quando já não havia por certo motivo para assustar-se com o seu aspecto, apareceu ligeiramente mais cedo do que era habitual e deu com ele a ver à janela, imóvel, numa posição em que parecia um espectro. Gregor não se surpreenderia se ela não entrasse pura e simplesmente, pois não podia abrir imediatamente a janela enquanto ele ali estivesse, mas ela não só evitou entrar como deu um salto para trás, diria que alarmada, e bateu com a porta em retirada. Um estranho que observasse a cena julgaria com certeza que Gregor a esperava para lhe morder. É claro que imediatamente se escondeu debaixo do sofá, mas ela só voltou ao meio-dia com um ar bastante mais perturbado do que era vulgar. Este acontecimento revelou a Gregor a repulsa que o seu aspecto provocava ainda à irmã e o esforço que devia custar-lhe não desatar a correr mal via a pequena porção do seu corpo que aparecia sob o sofá. Nestas condições, decidiu um dia poupá-la a tal visão e, à custa de quatro horas de trabalho, pôs um lençol pelas costas e dirigiu-se para o sofá, dispondo-o de modo a ocultar-lhe totalmente o corpo, mesmo que a irmã se baixasse para espreitar. Se ela achasse desnecessário o lençol, decerto o tiraria do sofá, visto ser evidente que aquela forma de ocultação e confinamento em nada contribuíam para o conforto de Gregor; neste instante, ela deixou o lençol onde estava e ele teve mesmo a impressão de surpreender-lhe um olhar de gratidão, ao levantar cuidadosamente uma ponta do lençol para ver qual a reação da irmã àquela nova disposição.

Durante os primeiros quinze dias, os pais não conseguiram reunir a coragem necessária para entrarem no quarto de Gregor, que freqüentemente os ouvia elogiarem a atividade da irmã, que anteriormente costumavam repreender, por a considerarem, até certo ponto, uma lia inútil. Agora, era freqüente esperarem ambos à porta, enquanto a irmã procedia à limpeza do quarto, perguntando-lhe logo que saía como corriam as coisas lá dentro, o que tinha Gregor comido, como se comportara desta vez e se porventura não melhorara um pouco. A mãe, essa, começou relativamente cedo a pretender visitá-lo, mas o pai e a irmã tentaram logo dissuadi-la, contrapondo argumentos que Gregor escutava atentamente, e que ela aceitou totalmente. Mais tarde, só conseguiam removê-la pela forca e, quando ela exclamava, a chorar: Deixem-me ir ver o Gregor, o meu pobre filho! Não percebem que tenho de ir vê-lo, Gregor pensava que talvez fosse bom que ela lá fosse, não todos os dias, claro, mas talvez uma vez por semana; no fim de contas, ela havia de compreender, muito melhor que a irmã, que não passava de uma criança, apesar dos esforços que fazia e aos quais talvez se tivesse entregado por mera consciência infantil.

O desejo que Gregor sentia de ver a mãe não tardou em ser satisfeito. Durante o dia evitava mostrar-se à janela, por consideração para com os pais, mas os poucos metros quadrados de chão de que dispunha não davam para grandes passeios, nem lhe seria possível passar toda a noite imóvel; por outro lado, perdia rapidamente todo e qualquer gosto pela comida. Para se distrair, adquirira o hábito de se arrastar ao longo das paredes e do teto. Gostava particularmente de manter-se suspenso do teto, coisa muito melhor do que estar no chão: sua respiração se tornava mais livre, o corpo oscilava e coleava suavemente e, quase beatificamente absorvido por tal suspensão, chegava a deixar-se cair ao chão. Possuindo melhor coordenação dos movimentos do corpo, nem uma queda daquela altura tinha conseqüências. A irmã notara imediatamente esta nova distração de Gregor, visto que ele deixava atrás de si, ao deslocar-se, marcas da substância pegajosa das extremidades das pernas, e meteu na cabeça a idéia de arranjar-lhe a maior porção de espaço livre possível para os passeios, retirando as peças de mobiliário que constituíssem obstáculos para o irmão, especialmente a cômoda e a secretária. A tarefa era demasiado pesada para si e, se não se atrevia a pedir ajuda ao pai, estava fora de questão recorrer à criada, uma menina de dezesseis anos que havia tido a coragem de ficar após a partida da cozinheira, visto que a moça tinha pedido o especial favor de manter a porta da cozinha fechada à chave e abri-la apenas quando expressamente a chamavam. Deste modo, só lhe restava apelar para a mãe numa altura em que o pai não estivesse em casa. A mãe anuiu-se, entre exclamações de ávida satisfação, que diminuíram junto à porta do quarto de Gregor. É claro que a irmã entrou primeiro, para verificar se estava tudo em ordem antes de deixar a mãe entrar. Gregor puxou precipitadamente o lençol para baixo e dobrou-o mais, de maneira a parecer que tinha sido acidentalmente atirado para cima do sofá. Desta vez não deitou a cabeça de fora para espreitar, renunciando ao prazer de ver a mãe pela satisfação de ela ter decidido afinal visitá-lo.

- Entre, que ele não está à vista - disse a irmã, certamente guiando-a pela mão.

Gregor ouvia agora as duas mulheres a esforçarem-se por deslocar a pesada cômoda e a irmã a chamar a si a maior parte do trabalho, sem dar ouvidos às admoestações da mãe, receosa de que a filha estivesse a fazer esforços demasiados. A manobra foi demorada. Passado, pelo menos, um quarto de hora de tentativas, a mãe objetou que o melhor seria deixar a cômoda onde estava, em primeiro lugar, porque era pesada de mais e nunca conseguiriam deslocá-la antes da chegada do pai e, se ficasse no meio do quarto, como estava, só dificultaria os movimentos de Gregor; em segundo lugar, nem sequer havia a certeza de que a remoção da mobília lhe prestasse um serviço. Tinha a impressão do contrário; a visão das paredes nuas deprimia-a, e era natural que sucedesse o mesmo a Gregor, dado que estava habituado à mobília havia muito tempo e a sua ausência poderia fazê-lo sentir-se só.

- Não é verdade - disse em voz baixa, aliás pouco mais que murmurara, durante todo o tempo, como se quisesse evitar que Gregor, cuja localização exata desconhecia, lhe reconhecesse sequer o tom de voz, pois estava convencida de que ele não percebia as palavras -, não é verdade que, retirando-lhe a mobília, lhe mostramos não ter já qualquer esperança de que ele se cure e que o abandonamos impiedosamente à sua sorte? Acho que o melhor é deixar o quarto exatamente como sempre esteve, para que ele, quando voltar para nós, encontre tudo na mesma e esqueça com mais facilidade o que aconteceu entretanto.

Ao ouvir as palavras da mãe, Gregor apercebeu-se de que a falta de conversação direta com qualquer ser humano, durante os dois últimos meses, aliada à monotonia da vida em família, lhe deviam ter perturbado o espírito; se assim não fosse, não teria genuinamente ansiado pela retirada da mobília do quarto. Quereria, efetivamente, que o quarto acolhedor, tão confortavelm